Quarenta e cinco anos após a inauguração da BR 319, ocorrida em 27 de março de 1976, pelo então Presidente da República, General Ernesto Geisel, no contexto da integração da Amazônia, sob o mote “integrar para não entregar”, somos convidados a refletir sobre a saga desta rodovia para avaliar se há o que comemorar nesta data.
Construída ao longo de oito anos em meio à floresta amazônica, o projeto da pavimentação total dos seus 877km, ocorreu dentro do Plano de Integração Nacional-PIN, com cunho geopolítico pois se buscava integrar fisicamente o território nacional; tal plano foi criado pelo governo militar por meio do Decreto-Lei nº1.106, de 16 de julho de 1970, assinado pelo Presidente Médici.
A novidade da inauguração incentivou várias famílias que gradativamente foram se instalando ao longo da rodovia, concentrando-se sobretudo no sul do estado do Amazonas onde iniciaram os trabalhos na agricultura e na pecuária. Nos seus áureos primeiros anos de existência, a BR 319 contava com ônibus que fazia a linha Manaus – Porto Velho – Manaus, percorrendo a extensão da rodovia no tempo de 12 horas em média. Porém, em dezembro de 1989, em virtude da péssima manutenção e a retirada do pavimento, as linhas de ônibus deixaram de ser oferecidas, iniciando o processo de esquecimento e isolamento.
Neste período de esquecimento iniciado em 1989 e que, de certo modo, se estende até hoje, por diversas vezes a reconstrução da BR 319 foi objeto de vários planos do governo federal com o propósito de desenvolvimento e/ou crescimento, como em 1996, com o plano “Brasil em Ação”, e mais recentemente, em 2007, no “Plano de Aceleração do Crescimento” (PAC). O que se observa, porém, sobretudo nesta última década, é que a BR 319 em muitas ocasiões serviu de especulação política que fez dela promessa eleitoreira, quando não motivo para uso de recursos públicos que nem sempre alcançaram o fim para o qual foram destinados.
Em 2015 tivemos a esperança de retorno da trafegabilidade da BR 319, reacendendo nos corações dos amazonenses, roraimenses e rondonienses a possibilidade de trafegar pela rodovia. Com a retomada dos serviços de recuperação da rodovia pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), os quais se limitavam à recomposição mecanizada de aterro; recomposição de revestimento primário; limpeza lateral e roçada; reforma de pontes de madeira; substituição de pontilhões de madeira deteriorados por bueiros e substituição de bueiros metálicos rompidos. Mas, antes mesmo do fim dos serviços e para consagrar a infortunada história desta única via de acesso por meio terrestre do Amazonas ao Brasil, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) embargou administrativamente as obras alegando danos ambientais, seguido pelo Ministério Público Federal no Amazonas (MPF-AM), que impetrou Ação Civil Pública na Justiça Federal do Amazonas solicitando a imediata paralisação das obras, a qual foi acatada parcialmente e determinou a suspensão dos serviços.
Após semanas houve liberação para a realização das obras de manutenção, porém entre os anos de 2015 até 2021 várias ações do Ministério Público Federal resultaram em paralizações e suspensões das obras de manutenção. Recentemente o próprio MPF parou o processo de pavimentação do Lote C (198-250) agindo de má-fé e atrasando significativamente a recuperação da rodovia, gerando prejuízos econômicos para quem depende da rodovia.
Direitos que vão além do “ir e vir”, pois sem a trafegabilidade da BR 319, os direitos básicos como saúde, educação, segurança, etc, e os serviços públicos sob concessão, como energia elétrica, telecomunicações, transporte coletivo, entre outros, são dificultados quando não completamente usurpados, originando um processo de exclusão e criando uma expressiva gama de cidadãos que vivem ignorados pelo Estado Brasileiro.
A realidade paradoxal da BR 319, que se caracteriza pelos dois extremos pavimentados e em boas condições de trafegabilidade, quais sejam, de Manaus–AM ao Km 200, aproximadamente e de Porto Velho-RO à Humaitá–AM (cerca de 220km), torna esta rodovia, provavelmente, a única do país que possui essa condição sui generis: seu trecho do meio, com aproximadamente 450km, em condições de trafegabilidade.
Estranhamente, o MPF-AM quer que o processo de licenciamento para a pavimentação da rodovia não seja fracionado, quando, na verdade, a realidade da BR 319 é a de uma rodovia fracionada em pelo menos 4 segmentos: Manaus ao Km 198; 198-250 Lote C; trecho do meio; Humaitá a Porto Velho.
A luta pela retomada do tráfego na BR 319 não ignora os impactos ambientais que isto poderá causar, mesmo sabendo que o impacto maior foi causado quando de sua construção na década de 1970. Pelo contrário: entende-se que a pavimentação desta rodovia irá possibilitar a eficiente ação do Estado por meio de seus órgãos fiscalizadores que, conjugados, poderão coibir ações criminosas contra o meio ambiente. Sem a trafegabilidade na BR 319, tem-se dificultada a presença dos órgãos fiscalizadores, criando um cenário favorável para a realização de crimes como biopirataria, extração ilegal de minérios e madeira, desmatamento, caça ilegal de animais silvestres, etc. A luta pela BR 319 implica também em exigir que o Estado possa aparelhar melhor os órgãos fiscalizadores para preservar o ecossistema no entorno da rodovia.
Assim, não obstante os praticamente 30 anos de abandono e infortúnios que envolvem a BR 319 – dentre eles a destruição criminosa do asfaltamento do trecho do meio denunciada pelos antigos moradores da Vila Igapó Açu e de outras localidades – o que se pode vislumbrar como real motivo de comemoração é a participação popular que cresceu significativamente neste último ano em todas as cidades que são interligadas por esta rodovia. A vergonhosa situação de uma rodovia federal que possui seu trecho do meio intrafegável e que mantém uma capital de estado e várias outras cidades no isolamento por meio terrestre, causa indignação e repulsa por parte daqueles que se colocam a refletir sobre a BR 319 e os torna arautos desta rodovia.
O discurso que pretende estabelecer a contradição entre rodovia x preservação do meio ambiente, constitui-se num sofisma que pode ser desconstruído pelo exemplo concreto de que a BR 174, no trecho entre Manaus-AM e Boa Vista-RR, está toda pavimentada e nem por isto os impactos da pavimentação daquela rodovia eliminaram o ecossistema a sua volta; bem como pode ser desconstruído pelo argumento de que o desenvolvimento sustentável é praticado em todo o mundo e em outras partes do Brasil, garantindo o progresso e a preservação ambiental, de modo que com a BR 319 não haveria razão para ser diferente, bastando para isso a boa vontade política e a formação de uma governança que envolva governo e órgãos fiscalizadores.
A comemoração dos 45 anos da BR 319 manifesta-se, portanto, no despertar da consciência cidadã que se intensifica e cresce a cada dia com novas adesões, o que mostra que cada vez os cidadãos estão mais conscientes na exigência do direito de usufruir de uma rodovia em condições de trafegabilidade, que lhes garanta não só a possibilidade de escolher entre os modais de transporte, mas que lhes garanta o direito à presença do Estado como promotor de bens e serviços essenciais à dignidade humana.
Associação “Amigos e Defensores da BR 319: Um Direito Nosso”
AAD-BR 319
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